AUTOCRACIA

1.17.2005

Humanismo ou Egotismo?
Da Vinci - O Homem de Vitrúvio

O Humanismo renascentista foi uma poética revolução de ideais, escrita de forma indelével nas páginas da História. Derrubou com o dogma teocentrista enaltecendo as qualidades do indivíduo e reformou a visão do papel do Homem no Mundo. De uma maneira apropriadamente romântica poder-se-à dizer que roubou a Deus para dar ao Homem. O furto concedeu-nos liberdade e esperança numa sociedade agrilhoada pelo poder clerical.
Sem a Revolução Humanista o homem medieval nunca ascenderia do barro biblíco a uma condição de auto-reflexão em que se pudesse ver como um moldador da realidade, um criador, possuidor de uma centelha divina que o torna único.
Compreenda-se que, na época, os dogmas cristãos eram ainda tremendamente poderosos e regiam todo o pensamento. O homem era visto como a criação imperfeita de Deus, pior: um pecador contra Deus - criador absoluto, omnipotente e omnipresente, a força invisível que presidia a todos os actos humanos. Seria impensável na altura (e daí a enorme dimensão da Renascença) um indivíduo assinar uma obra que tivesse produzido, porque tudo era atribuído à inspiração divina. Essa era a fonte da vontade que guiava a mão do artista. Não é de surpreender que, neste clima, personalidades tão célebres quanto Nostradamus se sentissem tradutores pessoais da palavra divina, pois, feito à semelhança de Deus, só o pecado era humano.
A Bíblia é o exemplo perfeito desta mentalidade, encontra-se repleta de histórias em que as mais diversas personagens ouvem a voz de Deus, falam com Deus, vêem Deus, etc.
Com o Renascimento institui-se o ideal antropocêntrico, segundo o qual o Universo foi criado exclusivamente para o Homem e ele é o seu centro. É com tal arrogãncia que se dá início a um dos períodos mais próperos e brilhantes da História. O Homem torna-se sagrado e a Arte espelha esse auto-deslumbramento.
Hoje em dia, na sociedade dita ocidental e na ausência de dogmas tão poderosos, deparamo-nos com um sentimento subterrâneo de desilusão e descontentamento com o mundo real, uma necessidade voraz e irracional pelo mito e pelo transcendente. Na civilização pós-industrial a Ciência substituiu o Clero e implantou na consciência colectiva a sensação de que tudo no mundo natural pode ser compreendido, tudo pode ser dissecado e analizado e objectivado. Nada é sagrado e Deus está morto.
Obviamente nenhum compêndio científico postulou que “a entidade anterior ao Cosmos cuja inércia gerou a entropia e a causalidade condensadoras da energia primordial na dinâmica dimensional da geometria não-euclidiana do espaço-tempo é um paradoxo físico desprovido de realidade”, mas esse é o seu legado.
Existe, sem dúvida, uma ausência de raízes espirituais no homem contemporâneo, patente na procura neurótica de tudo o que hoje se convenciona como “alternativo” e na quase infantil aceitação desses misticismos. E esse comportamento parece intrinseca e inexoravelmente humano.
O que tenciono discutir neste tópico são as visõs opostas destas duas realidades distintas: a pré-Renascentista e a pós-Industrial. O que há de negativo no antropocentrismo é por demais evidente: é uma doutrina tão dogmática quanto a que a antecede. O Humanismo, em si, enquanto utopia e ideal, é impermeável a uma depreciação, mas as suas consequências na mentalidade ocidental são nefastas. A insaciabilidade humana pelo divino manifesta-se na demonização e sacramentação não só dos fenómenos, mas também do próprio Homem. Desta forma criam-se ícones, santos, génios e anti-cristos, tabus… É impossível evocar Hitler sem despertar ódios da mesma forma que evocar Einstein inspira admiração. Esta atitude não é por si uma herança humanista, e os casos limite serão sempre um mau exemplo, pois o ímpeto para a adoração sempre fez parte da humanidade. Mas é uma herança humanista a autoria e a ideia de propriedade intelectual e, nesse campo, os homens por trás das obras importantes da História são hoje mais importantes do que as suas próprias obras.
As palavras em tão curto espaço são sempre insuficientes para desconstruir tão complexa questão e em termos absolutos torna-se árduo explanar a justa e total pertinência dessa. Numa palavra, este é um texto iconoclasta. Não pretendo culpar o Humanismo pelos ícones, mas antes afirmar que, por serem um exercício de auto-devoção egotista, os ícones actuais tornados possíveis por toda a era humanista que nos antecede, são anti-humanos (o ícone é o estatuto de algo além-humano).
A Idade Média e o sistema ideológico que a caracteriza, por mais cruel que o considere, tinha pelo menos o mérito de, ao silenciar o ego humano e remeter o homem ao anonimato, tornar as suas criações universais. Não existia propriedade intelectual e a lógica inerente a essa premissa, que hoje podemos compreender, é que, de uma ou de outra forma, tudo já foi inventado e nesse prisma toda a criação é um exercício de repetição. No modelo medieval a autoria pertence à totalidade e na assinatura lê-se “Humanidade”.

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